quarta-feira, 28 de julho de 2010

Volume I - bloco 3 (1/3)




[pausa]

As fileiras de carretas de madeira empurrada uma na outra no pátio, deixando para trás as tábuas rangentes da escada, abrimos a porta com vidros, onde arranhões se ressaltavam na gordurosa, parda-escurecida pintura, a caixa de correios feita de arqueada lata escura, de branco arrebentado esmalte do oval brasão-do-nome, do cartão manchado firmemente pregado, impresso com o adornado texto do leitor-assinante do Observador Popular [Völkischer Beobachter, jornal do NSDAP, o partido nazista] e entramos na cozinha. Na luz esfumaçada, que caía através das janelas, pode-se reconhecer o fogão e a pia, e à mesa, sob o verde amparo-de-porcelana da lâmpada do teto, altiva na cadeira com encosto vertical, a mãe de Coppi. Ela tinha retornado de seu trabalho de meia-jornada nas oficinas da Telefunken lá na marginal Hallensche [Hallesches Ufer], agora descalçado os sapatos e meias, e depois mergulhado os pés numa bacia com água quente. De início, apenas turvo a perceber, com flutuantes contornos de uma janela dividida em seis retângulos, a mostrar-se os detalhes do formato, quando nós nos sentamos à mesa brilhante-polida. Da base do cabelo grisalho, atado atrás num nó, corria delgadas dobras em forma de leque sobre a testa até a raiz do nariz, entre densas sobrancelhas. O nariz era arqueado, profundas marcas se mostram das narinas aos cantos da boca até o queixo, os lábios eram estreitos, umedecidos com a ponta da língua, com o dorso da mão ela esfrega as fechadas pálpebras com pigmentos amarelados. Seu delgado pescoço crescia rígido entre os ombros inclinados, ela trajava um vestido azul-claro, com estrias longitudinais em azul-escuro e um colar com um broche, cujas pérolas-de-vidro se refletiam no espelho da janela na parede oposta. Também nas pupilas de seus olhos, que já se abriram, brilhou o formato da janela. As metades da janela estavam firmemente engatadas, que a fechadura com a chave ainda girada, a toalha de mesa se destacava em argolas. Da parede jorrava um débil verde no cômodo, além do espelho não havia mais que um calendário e um relógio, numa redonda moldura branca. Uma porta levava a um quarto, no qual encontrava-se a cama dos pais de Coppi, enquanto Coppi dormia no sofá da cozinha, entre o baú e a baixa estante de livros, de todo semelhante as instalações em nosso apartamento na rua Pflugstraße, quando eu lá morava com meus pais. A dimensão da cozinha, que lentamente se ensombreia, enquanto o filamento da lâmpada ficava mais nítido, formava uma conformidade que a nós, à mesa sentados, desejava impor um sentimento de uma dominante derrota. Além deste cubículo, detrás de muros esmigalhados, das grades das escadas, do poço do pátio, só havia hostilidade, aqui e ali a prevalecer semelhantes pequenos espaços gradeados, que sempre ficam mais raros, sempre mais difícil de achar ou logo não mais seriam encontrados. Cada palavra devia expressar a impotência, no acerto de cada tom, ao dizer aquelas palavras mais raras para nós, nos últimos quatros anos, Perseverança, Confiança e Vitalidade. A sofrida catástrofe para superar era esta a condição para tudo o que se realizava, seja sozinho ou junto daqueles de mesma disposição. Geralmente fazia-se tal consolidação de forma imperceptível, rotineira até aqui, bastavam apenas alguns poucos momentos de silêncio. Mesmo em nosso diálogo então cotidiano, quando reunidos, sempre era sobrecarregado pela proximidade de um perigo fatal. Todos, o que do último ano tínhamos adquirido uma noção, permanecia o respeito por esta relação entre necessário isolamento e máxima investigação atenta num terreno adversário, cujas fronteiras se expandem continuamente. Que cansaço, exaustão às vezes fora do controle experimentamos, que não queríamos aceitar, e explicávamos a fraqueza física e do ânimo em relação à fisiologia. Indo longe, seguíamos além, esperávamos, até ter acabado, ao pensarmos nas prisões, nos brejos, junto aos campos-de-tortura cercados por arame-farpado, e encontravamo-nos depois de um instante novamente em nosso contexto, no qual apesar de aparente desesperança, cedia determinado ponto-de-apoio e uma direção. Depois da falha da coalisão [de Comunistas e Social-Democratas], depois da supressão das nossas organizações, nós tínhamos, no cômodo verde a escurecer, uma série de coletivas sessões, que eram inalteráveis e nas quais foram transmitidas para nós instruções e notícias vindas de fora. Era a densidade dentro da cozinha, cuja janela Coppi então cobria com um papel escurecido, também bem hermético, assim concedia logo perspectivas, às quais para nós ligadas às ações, que levava a determinados lugares geográficos em bruscas discussões e discordâncias. Primeiro, fugíamos da vigilância a seguir-nos passo a passo, para poder debater as diretivas, que nos davam segurança e possibilitava trabalho contínuo. Funcionários diretores dos partidos políticos proibidos, que haviam conseguido escapar da prisão e da morte, tinham sido levados para fora dos limites de suas bases, às vezes eles voltavam ao país, e em pequenos grupos conspiratórios em movimento, camuflados em associações de jogadores de boliche, cantores, esportistas, jardineiros, seguíamos em geral apenas em dupla, ou em trio, ou grupo de quatro, originados como medidas de resistência nos amplos arredores. Eram frequentes as trocas dos nomes dos lugares, onde aconteciam os encontros. Assim foram os debates em Moscou, no outono de mil novecentos e trinta e cinco, sobre a estrutura das atividades ilegais e sobre a necessidade de se conseguir uma unidade dos partidos de trabalhadores, que perdera-se em Bruxelas, cidade onde se realizara, no início do século, o Congresso dos social-democratas russos, no originalmente denominado Dia da Unificação do Partido, que, no entanto, levou à divisão em Bolcheviques ['maioria'] e Mencheviques ['minoria']. Na alusão à este ponto de partida histórico ficou a Ironia dialética, então desde julho de mil novecentos e três não permaneceu apenas a fratura interna do Partido russo, mas também teve consequências nas oposições nas opiniões dos social-democratas alemães e russos, finalmente a provocar a divisão nas Segunda e Terceira Internacionais. A menção à Bruxelas lembrou-nos cada armazém de grão, no calor abafado, afligidos por pulgas e ratos, sobre tábuas ajuntados, a rastejarem, os emigrados revolucionários russos, sob a liderança de Lênin, a fundamentar as estratégias deles. Relembradas foram a tenacidade e a determinação e também a irreconciliação, com que as opiniões foram conduzidas, porém marcada a escolha dos nomes dos lugares ao mesmo tempo em que faziam esforço para reencontrar um perdido ponto-de-vista em comum. As decorridas três décadas foram um tempo reduzido, dessa divisão do Proletariado, mas nos grandes Partidos o resultado de tal desunião reforçou a ampla fragmentação a favorecer um desastre, sempre à espreita, pronto a se aproveitar para atacar a cada sinal de fraqueza e para suprimir em toda a extensão todas as tentativas para uma renovação. Pois até o limite seguiu a inimizade fatal em luta entre os partidos dos trabalhadores, com a destruição da solidariedade, o efeito do Fraktionalismus [facções dentro da Esquerda, falta de Unidade do Partido], ao que todos estariam comovidos pela lembrança de Bruxelas, tanto maior parecia a nós a coragem na presente incompatibilidade das linhas políticas, a iniciar a fonte de controvérsias e com isso levar a um maior grau de dificuldade das nossas atuações. As discussões sobre a unidade de ação entre Comunistas e Social-Democratas se situavam quanto às decisões básicas para uma orientação da política para a construção de Frentes Populares, que algumas semanas antes, foi acertada para o Sétimo Congresso Mundial do Komintern [Internacional Comunista]. Na falta de informações sobre os detalhes das polêmicas tínhamos examinado as gravuras dos prédios da Internacional Comunista, para ter ao menos aquele lugar diante dos olhos, onde de tais debates dependiam os nossos destinos. Naquele tempo mantinha a casa simétrica, cheia de janelas, bem próxima ao portão Trojckije até o Cremlin, um brilho rosado sob as pequenas nuvens desfeitas no céu crepuscular, e pensávamos também nas cúpulas douradas, subindo dos muros vermelhos, com pontas abertas em forma de flor-de-lis, e do outro lado, diante da enorme praça aberta, o compacto cubo, a negra Kaaba [referência ao santuário islâmico ], contendo o caixão envidraçado, elevado [o corpo de Lênin]. Tentamos adequar ao modelo os nossos pequenos distritos e conduzir nossa prática isolada em concordância com as diretivas, com seus lemas, cujos múltiplos temas dos delegados eram coletados, comparados, revisados, refinados e fortalecidos em debate. Desde a nossa infância os incessantes esforços para a construção de uma Frente de Unidade, porém estávamos meia década vivendo dentro do poder fascista, e os esforços emperrados, obstruídos, rumo a uma solução, a insistir na superação dos mesmos erros. As notícias escassas, que a nós, os de dezoito anos, chegavam, na clandestinidade, eram conhecidas nas conversas, sempre de novo resolvidas, testadas, conferidas e, na sequência, examinadas. Isto era para nós uma condição básica, que os eventos em grande escala nunca viesse a ser para alguém algo incompreensível, inacessível, que deixaríamos examinar nosso isolamento com desamparo. Estávamos certos do fato de que lá fora algo existe e se fortalecia e para a reação estaria preparada. E conforme mais difícil se tornasse, no interior dos restantes grupos ilegais, incorporavam contato uns com os outros, a prestarem ajuda mútua e a informar uns aos outros sobre os planos, tão considerável era cada mínimo detalhe, a permitir tirar conclusões sobre a situação, ao decorrer das ações fora do nosso distrito. Mas desde um ano tínhamos então também, previsto um maior controle, que autorizava mais raramente movimentos em maior extensão nas vizinhanças, tais mudanças articuladas dentro do Partido soviético, que nos infligiram cuidados adicionais, e que, deixavam ocultos seus motivos profundos, a exigir de nós uma aguçada atenção contra todos aqueles nos quais tínhamos confiado. Eu mesmo que, logo depois do domínio fascista, tinha começado a trabalhar, foram anuladas as condições que permitiram a atividade política de nossos pais. Para eles além dos empregos haviam interesses coletivos de engajamento cotidiano, que se prolongava na pluralidade das afiliações do Partido e sobre o conflito ideológico. Somente o preconceito do antagonismo entre as gerações ficou compensado, mais forte ainda que antes havia a única linha-de-separação, que havia definido a luta-de-classes, e esta decorrida através de toda a população mais velha. Foi apenas por isso que então se perguntava de que lado do front [frente de combate] se estava, quando se mantinha em silencioso consentimento nas ações coletivas. Nosso desenvolvimento pessoal ocorria em forçada restrição, um movimento de liberdade cultural era impensável, era o que aprendíamos, a poder ser conquistado apenas em caminhos ocultos. Mil novecentos e trinta e sete, em sinais paradoxais de luta de um amplo e uniforme front e da desconfiança interna, da desagregação na própria fileira, assim coagidos, à cada impulso que recebíamos, depois de avaliação própria, com frequência ao modo visionário de interpretar e logo conceder uma forma idealista. O que tínhamos ouvido sobre a Espanha, sobre o movimento revolucionário na China, sobre os distúrbios e revoltas no sudeste asiático, na África, na América Latina, ou sobre as greves em massa, as coligações dos sindicatos e partidos trabalhistas na França, deixava-nos a conjecturar que o pensamento rumo a vitória sobre as forças reacionárias do mundo não era tão equivocada como se queria retratar nas frases gritadas, os slogans da Gleichschaltung [a conformidade forçada sob o regime nazista] em nosso país. Porém se tentávamos, nas operações e organizações, descobrir sinais de mudanças, de insubordinação, de sabotagem, apenas encontrávamos resignada adaptação, vigilância muda, e nossas Utopias não poderiam enganar-nos tanto, que muitos dos quais, que deixamos no frio ainda em janeiro de mil novecentos e trinta e três, pobremente trajados, que indo para a casa de Liebknecht [líder comunista] viram já a marchar com as bandeiras, nas quais o vermelho das cruzadas ferramentas de trabalho foram substituídas pelo anguloso símbolo da destruição [a foice e o martelo substituídos pela suástica].
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trad. LdeM