quinta-feira, 5 de maio de 2011

Volume I - bloco 7 (1/2)






bloco 7










A Divina Comédia era tão inquietante, rebelde, e também com forma e tema aparentemente bem diverso quanto o Ulisses [de James Joyce], o qual tínhamos conhecido primeiramente em fragmentos, como se fosse jogo-de-palavras, hieróglifos. O que acontecia então aqui, nos perguntávamos desde o verão deste ano [1937], com o modo de imaginarmos algo como uma cúpula invertida, afundada para dentro da Terra, com seus círculos, cada vez mais fundos, e que devia exigir a duração de uma vida, enquanto ela seguia a fase até a chamada ascensão, que se fazia em espirais, até o alto, que estava além do representável. Nós ainda não tínhamos prosseguido desde a Francesca de Rimini e Paolo Malatesta [o Segundo Círculo, o dos luxuriosos], e já tínhamos passado muito tempo com a reinterpretação da tradução de Gmelin, na Biblioteca Universal Reclams, e a de Borchardt, na edição de livro de bolso da Editora Cottaschen, comparando as três fileiras com os terceiros italianos, que Heilmann, baseando-se em seus conhecimentos de latim e francês, lia para nós. Em certo modo algo contrastante das impressões linguísticas, das metáforas esmeradas, do ritmo perdido e da sequência de sons avançava nos íntimos contextos de um fervor nunca declinante que notávamos quando em nós mesmos despertava as experiências, das quais antes nem sabíamos, mas estavam preparadas, a atingirem o efeito através da Poesia. Da leitura nada queríamos de místico ou irracional, o que nos aborrecia, mas decompor cada lembrança em seus componentes, em discussões sobre a floresta na qual seguíamos ao lado do andarilho, durante semanas, e depois voltávamos depois com frequência, com consciência, para entender alguns motivos/temas nestas cantigas. Ao mesmo tempo era um movimento de tatear às cegas, no mundo da percepção em lugar não retornável, cuja porta de entrada e átrio seriam descritos de modo concreto assim como o bosque com seus animais, suas peculiaridades topográficas, sua luz lenta vertendo adiante, permitia a descrição de ampla aventura. Desde as primeiras linhas formava-se a impressão, que se aqui descrito, realmente não se deixava expressar com palavras e imagens, e quando se ajuntava o impossível então, de linha a linha, de trecho a trecho, em modo simétrico, com sucessivos números de margem de reforçada estrutura, a uma estável, harmônica, pensada unidade não mais diferente, seria o triunfo da faculdade de imaginação elucidada sobre o caótico, esquivante, de todo duvidoso. Isto mostrava-se não apenas a trilha adentro na estrutura de almas no Inferno, na qual a matéria-prima de uma época se condensava à visão subjetiva, ao contrário o ritmo no mecanismo do trabalho artístico. Junto a Arte se relacionavam pensamentos sobre a morte. O escritor da Poesia encontrava-se no meio da vida, porém ele se entregava em seu trabalho tanto a um morto enquanto guia [Virgilius] , quanto também ao encontro com os mortos. Enquanto ele seguia, ele se deslocava nesta proximidade da morte, o que ele respirava era um ar cheio de morte, junto aos falecidos, o reflexo daqueles que nada mais possuíam, e assim, ao meditar sobre isso, o que os mortos ali ainda sobreviviam diante dele, ao adentrar cada região, nas quais ele naturalmente esperava encontrar o próprio esqueleto, pois a ele parecia como se ele também fosse falecido. Podíamos comparar a viagem dele com a inércia embriagante do sono, conhecíamos o súbito cochilar ao alcance, o começo do sono, os instantes nos quais os ganchos-presilhas nas correntes da grua podiam te golpear o crânio, a correia de transmissão da máquina podia te arrancar o braço, ou à noite, de madrugada, de manhã cedo, que isso não permitia perceber se o quarto, no qual estávamos, era parte de um sonho ou se o sonho projetava-se em teu quarto, e neste estado intermediário, rodeados de pesado cansaço, porém ainda em condições, para ver, para ouvir, a nutrir pensamentos sobre o que parecia de relevante, a fazer-se notável e objetivo, quando ele compunha letras sobre o papel. Não podíamos ainda compreender a elaboração de um livro, uma pintura, até aquele momento éramos apenas receptivos à Arte e tínhamos, exceto por alguns poemas de Heilmann, no máximo elaborado de vez em quando um relato, muitas vezes sobre experiência além do âmbito do trabalho, que novamente referia-se a uma infinda dificuldade, do que chegar a uma amplitude, uma maior visão de conjunto. E comentávamos todo o complexo que nos oferecia o livro de Dante, e os sentimentos de culpa que faziam parte. Também insistíamos no nosso direito de ter livros, assim acontecia porém que devia ser uma leitura não sem cautelas. Nem ao menos os pais de Coppi participavam, em total impossibilidade, que assim tínhamos avaliado para o salto desde o concebido até o peculiar, aqui percebíamos bem o isolamento quanto ao que seríamos capazes de ler, mas não tínhamos aprendido no tempo certo, como era abrir e considerar um livro. Quando nós, com tanta convicção, falávamos de nossa auto-consciência cultural, e quando também sabíamos como essa tinha se mantido em alguns grupos, e assim muitos havia, empurrados adiante, não podíamos aceitar, a pensar diferente sobre a terrível paralisia a qual por causa do brutal domínio do poder, privava a leitura de iniciativa, tempo livre, incentivo e exemplo. Não era suficiente fazer com que as bibliotecas fossem abertas, mas antes superar a ideia obsessiva ao longo de gerações de que o livro não era algo feito para você. Nós nos sentávamos aos domingos no bosque Humboldt [Humboldthain] ou no cemitério da paróquia de Hedwig, na vizinhança da rua Plug [Plugstrasse], e procurávamos descobrir o que a Divina Comédia tinha a ver com a nossa vida. Nós supúnhamos antes de tudo que o despojamento seja uma das condições para a produção da Arte, que aquele que produzia se dedicava a conquistar algo fora de si mesmo. Porém isso soava de novo nada razoável, a Arte representava nossa convicção a uma maior realidade, porém, e assim era apenas para se alcançar através da tensão de todas as forças vitais. Então assim se revelava no determinado, conscientemente executado andamento da composição, que o misturar do pensamento de morte, a vida com a morte e com os mortos em si, bem podia provocar o impulso à obra-de-arte, que, porém, o produto pronto era determinado para os vivos e também por isso devia se apreender e refletir segundo todas as regras dos vivos. Dante demonstra este método de duplicidade, no qual superava o sobressalto diante do próprio delito, quando ele deixava símbolos que sobreviviam à vida particular [do Autor], e quando de início parecia, quando se ocultava esta transformação sob símbolos e alegorias, que apenas eram compreensíveis a quem era familiarizado com a Escolástica, assim deixava-se o trabalho de filigrana das metáforas, porém examinar mais e mais segundo detalhes, que a partir de uma imediata vizinhança falam de uma realidade observada. Não era mais necessário que entendêssemos as mensagens como elas talvez pretendessem dizer desde seiscentos anos, antes, ao contrário, que elas se deixavam deslocar até nossa época, que elas adquiriam vida aqui, neste parque, junto aos brinquedos das crianças, aqui, entre estas covas recentemente acumuladas, sob a Igreja de São Sebastião [Sankt Sebastian Kirche], assim era que [a obra artística] se fazia durável, a despertar nossas próprias ponderações, que ela exigia nossas respostas. Apesar de rodeados pela ruína, não ocorria-nos nunca o pensamento de que nossa vida recém-iniciada poderia ser precocemente extirpada, porém agora a própria morte seguia para um momento desde já divergente no foco, do qual se esquivava novamente, porém apenas o que sabíamos então, para mais tarde novamente emergir, cada vez mais nitidamente. Dante seguia entorpecido, porém rodeado por personificações, disformes, grotescas, resfolegantes ao redor, tais como lince, lobo, até rugindo com voz de leão, a ele acossando novamente, no declinar, e o que era o salvador, o guia de certo modo diferente diante da lembrança, deixava surgir a perseverança onde houvera ainda recente instabilidade. Aquele de Mântua, o lombardo, lhe chamava a continuidade no sentido, modo de pensar, que se prosseguia sobre vida e morte, e acima deste modo podia ao ponto-limite, onde esperava a dissolução, que o mundo fácil de se perder ainda poderoso de certo modo, a ficar mais violento, tumultuado, tudo se colocando de encontro a ele, o que lhe animava para a atividade mais poética, mais política, o que desfazia as esperanças dele, ele [Dante] expulso de Florença, sendo subjugado pelo exílio e pela miséria, e também que o que se tinha obtido após a auto-renúncia e ascetismo na vida. Ali junto a entrada do Reino dos Perdidos, ainda antes que Caronte empurrasse o barco para a travessia do Aqueronte, logo ficou esclarecido que se tudo se espiralava aqui não um Além no interior da Terra, ao contrário o mundo habitado, que Dante tinha invertido, de ponta-cabeça, na virada só século treze para o quatorze, com tudo o que denunciava de tumulto e maldade, ciúme, ira e ilusão. Desde o acúmulo de figuras/símbolos, das quais cada um era preso em suas manias, ele destacava sempre novamente detalhado, depois que ele tinha primeiro se abandonado ao frio apontar-de-dedos de Virgílio [a indicar a direção], e não apenas até desnudar a pele, com suas cicatrizes, deformações, caracterizada na loucura deles, eles [os Perdidos] se apresentavam aqui, senão enquanto representantes de determinados interesses de classe. Às vezes dominado por emoções diante da visão deles, os quais ele tinha defrontado em intrigas e controvérsias, porém sucedeu a ele o fato de registrar um padrão social, que para sua época devia ter sido notável. Aqui [na Divina Comédia] estavam todos os Grandes da época, até os Imperadores e Papas, retratados com seus nomes próprios, com traços individuais, e de suas paixões se incendiavam, numa irrupção, numa glaciação, nas quais se consumiam por toda a eternidade. Antes de tudo nós tínhamos folheado então, onde estava registrado o infortúnio provocado por eles mesmos, e já podiam reconhecer como se sistematizava a imensa fartura. A alucinação, na qual o matar e o torturar recaíam sobre o culpado, na qual cada perversidade foi à própria libertação, era ao mesmo tempo quase uma pedante catalogação de todos os atributos, os quais se trazia com a ascensão ao poder. Porém este moralista continuava, Coppi dissera, que entregava à condenação cada um de seus inimigos e antagonistas, enquanto ele mesmo era imaculado, ele bem poderia lamentar, poderia afundar em impotência, em vista de todas estas dores, que os outros sofreram, ou que causaram, ou também do próprio sofrer, porém nunca ocorreu-lhe o pensamento de que também ele, através de um hesitar, uma omissão, um calar-se, um negar, tornara-se culpa aos olhos de um outro alguém, ele que atravessara o Mal e sabia, enquanto se mantinha firma na mão do espírito protetor [Virgilius], da consciência artística, nada poderia molestá-lo. Não é isto também, Coppi perguntara, uma arrogância, diante da qual devemos nos resguardar na Arte?, e Heilmann respondera, em seguida, que esta insensibilidade talvez fosse igual a que conhecíamos no sonho e que isto para nós em geral antes de tudo possível suportar diante do que aparecia. Se as feras realmente golpeassem, se a fatalidade ao redor se realizasse tal como se ameaçava, ele teria nada mais além a declarar. O martírio do sonho e da poesia, Heilmann dissera, seja a entrega a uma situação, da qual não há saída, tudo o que nos aconteceria, como se isso fosse real, apenas continua o sonho até não ser mais suportável e acordarmos, assim como se liberta na poesia através da transmissão em palavras. A anestesia também fazia parte disso ao extremo, em posição referente a Arte, então sem cuja ajuda seríamos subjugados ou pela compaixão diante dos sofrimentos alheios ou pela consciência da própria miséria e poderia nosso calar-se nosso imobilizar-se de terror não converter-se em alguma agressividade, que é necessária para remover as causas do pesadelo. Igualmente era a claríssima radiografia do encontro decisivo entre a morte a sobrevivência a encontrar em muitas imagens. Enquanto eu ainda trabalhava no setor de montagem de centrífugas-separadoras, houvera um período no qual vivíamos com os sonhos de Piero della Francesca. Aqui não se tratava de um livro, que fora encadernado em algum lugar e poderia ser algum opcional, a se mostrar livremente em suas permanentes peculiaridades, antes ao contrário era uma série de fragmentos, que apenas deixavam uma ideia de totalidade, da qual os trechos faziam parte, e os que eram preenchidos por igual expectativa, que a cada olhada despertava o desejo de um encontro com as reais dimensões dos afrescos em Arezzo. Sem-sombras, em um recinto, sem profundidade, estavam as imagens, com suas armas, cavalos de guerra e bandeiras, encaixados uns nos outros, do que distintos do mesmo modo que as anteriores, e cada detalhe, seja a corrente de uma atiradeira, uma fivela, uma dobradiça, um penacho de elmo, o olho de um soldado ou cavalo, era de igual valor, à nenhuma outra regra eram sujeitados do que aquela imposta pelos planos de composição. As consonâncias do branco-cinzento, cinzento-escuro e sombra dos cavalos, as tonalidades rubras, violetas, cinzentas, verdes e azuis das peças de roupa, o vermelho das manchas de sangue, o brilho das espadas e armaduras, as ferraduras de cobre em couros embotados, a visão em espiral em volta de um curso d'água cristalino, reluzente-espelhado, com cisnes, a relva transparente destacada no reboco de cal e moita na areia branca da margem, a geométrica muralha ao redor de uma cidade, o azul-esverdeado do céu, que se percebia peculiar quanto ao solo, plano e ileso, que tudo numa olhada, que evitava toda e qualquer emoção, na monumental eficácia de um consecutivo deslocar de equilibradas formas. Coppi achou este olhar frio, incomunicável, o caráter definitivo do representado/ descrito [...]



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mais sobre Dante, Inferno
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Alighieri
http://pt.wikipedia.org/wiki/Divina_Comédia
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Pietro della Francesca
http://pt.wikipedia.org/wiki/Piero_della_Francesca
http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/piero/



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LdeM


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